domingo, 8 de março de 2009

"History of the main complaint", William Kentridge

Primeiro, se quiser saber antes do que é que estou falando, assista (o filme dura 5 minutos e 40 segundos), clicando no link abaixo. Sempre existe a opção de ler primeiro. Dá na mesma, no final.


"History of the Main Complaint" é mais um filme da série "Drawings for Projection", de William Kentridge, artista sul-africano, branco. A animação é composta por 21 desenhos em carvão e pastel seco, cada um alterado através de apagamentos e reconstrução, de forma que cada cena se faz com apenas um desenho. A escolha de material de pigmentação de textura suave, porém extremamente matérica, faz com que cada apagamento deixe rastros. Essas cicatrizes podem ser um elemento de interpretação: cada situação deixa marcas, ou, ainda, o movimento e a mudança ocorrem, mas nunca completamente.

De fato, assistindo aos outros filmes anteriores a "History...", vê-se que o processo de cura por que passa o personagem o leva não à mudança, mas a algo poderia ser lido como aquilo que ele já era antes. Os desenhos finais, que mostram o milionário de volta a sua mesa - posição de poder e autoridade - já foram parte de outra animação.

O milionário é Soho Eckstein, porco capitalista sul-africano que, ao entrar em coma, vai entrar em contato com seu inconsciente. A memória se ativa com os sons de escritório (telefone, máquina registradora, etc), que o levam a uma paisagem desolada, cortada por uma estrada. Nela aparece um negro morto, que desencadeia a lembrança do espancamento. A imagem é trazida de volta, a culpa do branco fica evidente, mas nada é resolvido: o paciente se restabelece e pronto.

O próprio apagamento do desenho é repetido no mata borrão, que vai apagando os focos de dor ou doença na radiografia, enquanto ela é de Soho Eckstein. Depois, o limpador de pára brisas apaga as cruzes vermelhas que ficaram no vidro, evidência da culpa do branco. A queixa principal, então, é descoberta, mas, como no passado, é apagada, e esse apagamento reverbera por toda a obra.

A obra é de 1996, ano em que se estabelece a Comissão para a Verdade e Reconciliação (iniciativa que a Igreja Católica repete em regiões destruídas por guerras ou situações de conflito social intendo - na Nicarágua, onde moro agora, existe uma também). Kentridge, como branco, faz seu mea culpa. Na África do Sul eram comum os julgamentos, em que vítimas do Apartheid davam testemunhos de seu sofrimento e humilhação, e buscavam reparação pelos crimes contra os Direitos Humanos de que foram objeto.

Funcionou? A resposta de Kentridge não é fechada. Soho Eckstein volta a ser o explorador que sempre foi, mas o "peso que o mantém inconsciente" (do prõprio autor), flutua. O que será feito disso, quem sabe? Trazer à tona é parte do processo de cura. Mas o paciente da animação saiu do hospital, e não houve conclusão definitiva da História.

A busca de resposta para a mesma questão aparece em "Shikasta", de Doris Lessing, livro da pentalogia "Canopus in Argus" (quem quiser ter uma idéia do que é que estou falando: http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,947537,00.html). Vou tentar falar pouco, pra não estragar o livro: há aí um julgamento dos opressores, os opressores fazem seu mea culpa (na cena intencionalmente patética, por exemplo, de um espanhol se jogando em lágrimas aos pés de alguns indígenas, por exemplo). Mas não é isso o que vai mudar o mundo. O que muda mesmo, é o desastre total, o fim dos meios de sobrevivência, e a eliminação do mal através da eliminação do próprio homem.

Disclaimer: essa resposta também não me deixa satisfeito...